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Mentira

Writing Sample

Tenho uma sobrinha de pouco mais de dois anos. É linda, esperta, e entende muito mais do mundo do que seus pais gostariam de admitir. Aprende tudo rapidinho e com gosto. Ela até sabe ler o alfabeto e, se você pedir, pode te cantar “Raindrops keep falling on my head.” É fofinha demais.

Porém, a minha sobrinha, sempre atenta ao mundo ao redor dela, também aprendeu o lado escuro da vida humana. Ela, amor de minha vida, sabe mentir.

O fim de semana passada estava jogando com ela como sempre, um desses quebra-cabeças que são mais difíceis que parecem. De repente notei o cheiro horrível de incontinência. Claro, é uma aflição que afeta todas as crianças do mundo, e a filha do meu irmão também não consegue evitá-la.

—Não cheiro cocô?

—Não, me disse.

A primeira mentira.

Enfrentei-a e, para acomodá-la, propus mudar a fralda. Rejeitou esta tentativa imediatamente. Só estava interessada em acabar o quebra-cabeça que tínhamos começado antes. Não posso culpar minha sobrinha inocente. Eu também queria jogar mais.

Enquanto o cheiro no quarto estava piorando, e minha sobrinha resolvia seu jogo indiferentemente, comecei a pensar na rapidez com que nós aprendemos a mentir. O instinto humano de mentir começa desde nossas primeiras palavras.

—   Fofo, foi você que deixou cair o copo?

—   Não.

—   Então quem?

—   Mãe eu não sei, não.

Na vida aprendemos a palavra “não” depressa. É uma das primeiras palavras da infância justo depois de “mãe” e “mais”. Desde aquela primeira fala, já sentimos a vontade de negar tudo. Não rompi o copo. Não pintei a parede com molho. Mãe, eu não fiz nada, eu te juro.

E então, essa compulsão nos segue até ser um adulto. Aquela primeira fábula da fralda sem cocô principia uma vida inteira de mentiras. Nós mentimos à mãe, ao professor, ao chefe, e sobretudo, à namorada. Meu amor, não esqueci seu aniversario. Não me parece mais gorda. O vestido te assenta muito bem.

Nem eu sou inocente. Minto quando é necessário, minto quando não quero me enrolar com alguém. E claro, quase tudo escrito é uma ficção também. Apesar disso, espero que você tenha confiança em tudo que te conto. Vou te prometer uma coisa. Quando cheira alguma coisa ruim, se tenho qualquer coisa na fralda e me perguntas quem foi, não vou te mentir — a não ser que estejamos jogando um quebra-cabeça, claro.

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