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Falando em sério

Writing Sample

O Senhor Madeira acordou domingo, um dia de calor insuportável, na mesma hora de sempre, às sete horas, e começou a rotina quotidiana. Despiu-se, entrou no chuveiro, fechou a cortina e colocou o rosto abaixo do chuveiro. Planejou o dia inteiro, embora de fato ele o fizesse desde a noite anterior: a limpeza, as compras simples de um solteiro, as chamadas chatas que tinha que fazer, o jantar com Cristina às nove horas. Pensando nisso, a sua cabeça ainda colocada embaixo da água fria naquele batismo diário, ele se arrepiou. Fechou a água e pôs-se a chorar. O Sr. Madeira deu-se conta de que nunca, na sua vida toda, contara uma piada.

A realização foi tão forte que, embora tivesse planejado um dia muito ocupado, não pôde comer nada no café da manhã. Vestiu-se e saiu do apartamento com dez minutos de atraso, desceu os quatro andares transpirando muito, e disse um bom dia para o porteiro.

            — Senhor Madeira, chamou o porteiro, tudo bem?

Já atrasado, não queria falar com o porteiro cansativo. No entanto, como não tinha muitos amigos, decidiu baixar a crista e contar a sua revelação para ele.

            — Não acredito, disse o porteiro com franqueza. Toda pessoa conta piada de vez em quando.

            — Pois é. Foi esta manhã no chuveiro que descobri este fato. Não é brincadeira.

            — É grave mesmo, falou o porteiro sem riso. No banheiro, me falou? Ó, Senhor Madeira, sabe por que os portugueses não fecham a porta quando vão ao banheiro?

O Sr. Madeira olhou para o porteiro sem resposta. Já quinze minutos de atraso, num intolerável calor.

            — Para ninguém olhar pelo buraco da fechadura, disse acabando a piada famosa.

            — Muito engraçado, felicitou o Sr. Madeira sem sorrir, vou me lembrar disto.

Saiu do prédio em melhor condição, resolvido contar esta mesma piada na próxima oportunidade, talvez para Cristina essa noite. Caminhou pela Rua Copacabana para realizar os afazeres do dia. O ônibus demorou quinze minutos para chegar, e tinha que procurar sombra para se escapar do sol. Atrasando quase meia hora finalmente entrou no consultório do dentista. Demorou preenchendo os formulários, ainda pensando na frustração da piada não contada.

            — Muito bem, disse a recepcionista, são 60 reais pagos antecipadamente.

Apanhando a carteira Sr. Madeira viu que, com tanto atraso, esquecera de tirar dinheiro do caixa automático. Limpava o suor na testa, pensando o que devia fazer, quando o dentista meteu a cara na sala de espera para o chamar. Com um tom de brincadeira, falou com o cliente.

            — Não se preocupe, Sr. Madeira. Sabe que outro dia veio aqui um moço de Minas. Ele me perguntou, “Doutor, quanto é que custa pra arrancar um dente?” Falei cento vinte reais. O moço, não satisfeito com o preço me disse “Puxa, é caro demais da conta!” Pedi desculpas mas era preço de tabela. Então ele falou, “Doutor, e se for só pra deixar meio bambo?”

A recepcionista rebentou de riso, enquanto o Sr. Madeira sorriu polidamente procurando na carteira o cartão de crédito.

Depois da consulta, não tinha muita vontade de fazer as compras e em de lugar de ir ao shopping, foi comer um queixo quente e uma cerveja bem gelada.

            — Nunca é cedo pra uma garrafinha, não é? falou o proprietário. Por que esta carranca?

Embora não quisesse, o deprimido senhor explicou para o proprietário tudo o que acontecera de manhã.

            — Entendi, disse ele com seriedade, é uma situação bem precária. Nenhuma?

Aqui o coitado do Sr. Madeira abaixou a cabeça com vergonha. Ao seu lado um homem gordo interrompeu a conversação.

            — Nenhuma piada? perguntou ele. De loiras, de portugueses, de caipiras? Que grave! Vou te contar alguma, tá? Uma loira, uma morena, e...

            — Não, obrigado, falou o Sr. Madeira com toda calma. Tenho que fazê-lo eu mesmo.

Todos concordaram com isso. Já o caso em questão de um homem que nunca contara uma piada conseguira interessar a clientela do restaurante todo.

            — Então tente. Nós estamos te ouvindo.

Aspirou e levantou o rosto, mirando a audiência em frente. Parou e pensou bem antes de falar. Com muito esforço elaborou uma historinha de um maluco que inventou um objeto que permitia que ele visse através das paredes.

            — Claro, disse o proprietário. Eu tenho muitas na minha casa que dão para a praia. Chamam-se “janelas”.

            — Eu também, insistiu o homem gordo. Mas não devemos interromper a piada do senhor. Siga, por favor.

O Sr. Madeira franziu, batido. Pagou a conta e voltou para casa, completamente derrotado. Um letreiro avisava que a temperatura alcançou 44 graus.Chegou à Rua Copacabana, saudou o porteiro e subiu ao quarto andar para passar mais uma tarde sem piadas. Era uma cena inteiramente lastimável.

Sentou-se na sofá, levantou-se, andou de um lado para outro neste apartamento sem alegria. Examinou atentamente a estante de livros procurando um livro de piadas e, sem sucesso, qualquer romance cômico. Nenhum. No quartinho havia acima da mesinha umas revistas populares: de informática, de política, de carros e mulheres nuas. Não obstante, com um calafrio horroroso, o Sr. Madeira compreendeu que nesta casa possuía nada de engraçado. Explorou a cozinha, mas entre facas e panelas achou coisas mais perigosas que engraçadas. No armário, nas gavetas, no chão: ele deu-se conta de que não coexistia com nenhuma piada, chiste, brincadeira, nem uma trocadilho só. Neste ecossistema sisudo não substituía a ironia, a sátira: até a farsa languesceria aqui. Era a residência mais séria de toda Copacabana.

Secou-se do suor outra vez e, sem nenhum recurso, resolveu tomar banho novamente. Despiu-se, entrou no chuveiro, fechou a cortina e colocou o rosto embaixo do chuveiro. Ficou contemplando o dia inteiro, embora o que quisesse fazer era planejar a noite com Cristina: comer no restaurante, tomar umas caipirinhas no bar, transar com ela depois. Fechando a água, secou-se, foi para o quartinho ainda nu, e repousou na cama. Um dia que não conseguiria esquecer.

Cristina chegou cedo. Batendo na porta por uns minutos, finalmente decidiu tentar a maçaneta. A porta abriu sem esforço. Achou seu namorado deitado na cama, nu, chorando. Confessou para ela a verdade nojenta de que nunca contara uma piada na vida.

            — Estou enlouquecendo, meu amor. Sou maluco mesmo!

Cristina, com muita compaixão, falou para ele:

            — Não é maluco, meu bem.

            — Sou. Sou maluco. Eu te explico. Mas estou tão nervoso que não sei por onde começar...

            — Comece do princípio.

            — Bem, disse o Sr. Madeira, no princípio eu criei o Céu e a Terra...

 

 

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