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Veio o monstro (Came the Monster)

Writing Sample Nestes dias penso muito em que o monstro que está a minha frente, comendo a minha comida, batendo a mesa e suplicando mais vinho, não é o inimigo que achava antes.

—Diga.
—Não.
—Tá bem.

Jogo três ovos na frigideira para refogar com bacon, o som e o cheiro misturando-se ao redor do meus ouvidos e nariz produzindo um nojo que termina na testa, uma dor que não vai sumir logo. Ao mesmo tempo não posso evitar ver a compostura notável na cara do meu monstro, de alívio e consolação, um sorriso quase inevitável ao ouvir a comida submergindo no azeite. Sirvo-lhe os pratos com um só pãozinho, embora saiba de antemão que o resultado será um sopapo doloroso. Xingando cautelosamente, ofereço o meu pão também, e finalmente nos sentamos em paz para o jantar.

Quero perguntar de novo, mas o monstro não tolera que interrompa enquanto come, e antes que possam sair as palavras da boca, empolga umas nozes restante na mesa e poupa-as no chão. Escapa uma gargalhada horrível.

—Diga.
—Não.
—Tá bem.

Não é muito claro quando descobri que o monstro que consome à vontade toda a casa era o único ser que podia me ajudar. Apesar disso, a nossa relação ainda fica restringida. A respeito de tudo que quero saber, os segredos guardados no bucho insaciado dele, nunca me permite conversar. Em qualquer caso este monstro caso não exige tanto, só comida, e quando estiver saciado ele me promete revelar a razão que fez Alessandra me abandonar. Comemos um prato cheio de amendoins.

O monstro viveu com minha mulher por longo tempo, bem antes de ela me conhecer. O que é que ele aprendeu, não é muito claro. De fato residia mesmo no seu coração, de modo que só quando Alessandra foi embora, eu tinha que arrostar o monstro. Cheguei aqui aquela noite, todo ensopado da chuva depois de um dia estafante na delegacia. Meu amor tinha fugido, levando tudo, inclusive a cama onde nos fazíamos amor, até o bloco onde tinha podido escrever um recado. Deixou somente a comida na cozinha, e seu monstro. Não quis permiti-lo ficar, desejava a solidão merecida ao homem deixado mas, ainda fica claro, a desgraça nunca vem sozinha. Logo me jogou para a parede, fechou a porta, e sentou-se na cozinha. Quando recuperei de novo estava pendurado em cima de mim, fumando, gritando para lhe dar comida.

Toda mulher vive com monstro. Isto não vai surpreender ninguém ainda que eu pelo menos não quisesse admiti-lo antes que minha própria mulher me abandonou. E o fato de que me deixou seu monstro para eu cuidar também não deve estranhar. Não sei se se trata de uma prenda ou uma praga, mas Alessandra não pretendia me deixar completamente só. A despeito dela, cuido do seu monstro atentamente, por uma questão de fidelidade. No casamento, tanto como no trabalho, sempre me esforço em possuir uma certa lealdade para com os outros, que inclui a minha mulher e por extensão a sua criatura. É curioso que nisso falamos de uma qualidade que ela nunca mostrava nem para mim nem para seu monstro.

Não gosto do monstro, isto deve ficar claro. Às vezes rege como um tirano insuportável. No entanto é o monstro que mostra o maior despeito entre nós. É ele quem me despreza, parece imutavelmente aborrecido comigo. Trata-me com desacato e desdém completo, atua com toda malícia, atribuindo a fome que sente às falhas que está vendo dentro de mim. Reclama, grita, e joga-me pelo chão. Tudo isso consigo agüentar em silêncio. O que machuca mesmo é tudo aquilo de que não consigo me defender, a mirada acusatória do monstro, e pior ainda o modo em que nem cumpre escutar as minhas justificações. Inexplicavelmente, são os momentos quando me ignora que realmente magoam.

—Diga.
—Não.
—Tá bem.

A situação está bem diferente do que imaginava antes de me casar. Naquele tempo imaginava que teria uma mulher que cuidaria de mim: ao chegar em casa me esperaria um beijo, uma bebida, e um bife. Sairíamos à noite, vestidos bem, e viveríamos felizes. Não sei, talvez fosse um romântico. Porém, e por muito que se esforçasse, Alessandra não sabia como lidar com as tarefas de casa. Aliás, era preguiçosa, passava horas em frente da televisão, fofocava com as vizinhas, ligava para a sua mãe, chamadas interurbanas custosas. Queria sair só para fumar cigarros. A indolência não embeleza, até enfeia, tanto que Alessandra perdeu muita da beleza que tinha antes do casamento. Os olhos enegreceram, as olheiras se estenderam. Com tempo, manchas floriram no rosto, o queixo enfraqueceu, a boca cresceu. E comia. Alessandra comia sem parar.

Sem dúvida, com ela o monstro aprendeu comer.

Conforto-me em pensar que agora pelo menos não tenho energia para pensar na mulher perdida. Mal chego da cozinha, o monstro me golpeia, me bate sem freio. Logo e sem palavras vai para o quartinho onde eu e Alessandra dormíamos, e fecha a porta com chave. Não faz mal, entenda bem, prefiro dormir sozinho na sofá mais que compartir uma cama com monstro. Meus sonhos são de um homem abandonado, solitários, como um prisioneiro cativado. Não é que pretendo escapar, já desisti de pensar nisso, penso só em como acalmar o monstro.

A situação na delegacia também não ajuda. Tento não falar muito em casa, então no trabalho fico meio calado também, não porque não tenho nada para dizer, mas porque já tenho medo de que tudo que vai sair da boca arrisca piorar a situação. Agora o monstro tem o costume de me telefonar quatro, cinco vezes por dia, sem me contar nada, só chorando e gritando numa linguagem incompreensível. Os meus colegas brincam disso, chamam-no o “cão policial.” As brincadeiras me ofendem, afinal é de meu monstro que riem.

Chego ao trabalho com atraso, saio cedo, tudo isso para o monstro não ficar sozinho em casa. Come muito, ele tem uma fome de cão, e além disso não sabe se cuidar. Vou ao mercado depois do trabalho para fazer as compras, enquanto ele fica no quartinho o dia todo fumando. Não pretende sair logo, nunca desiste de comer. Consome tudo que consigo trazer para casa. Quando demoro demais, ou se por acaso esqueço um dos ingredientes para o jantar, grita, grita até chorar. E eu? Choro e choro até gritar.

Por isso, quando chegou a mãe de Alessandra, eu deveria me sentir feliz. Tentei explicar-lhe que a sua filha se tinha ido embora, mas a minha sogra me fazia pouco caso, pois nunca tomava consciência das minhas palavras. Empurrou-me de lado—é uma mulher de amplas dimensões—e foi diretamente para o quartinho onde estava o monstro. Recuando atrás imaginei um cenário horroroso no qual a sogra seria comida pela insaciável criatura esperando do outro lado da porta. No entanto, depois de quantos minutos de sussurros indistintos, não ouvia nada mais vindo do quarto, nem os gritos do monstro nem a voz desprezível da sogra. Minhas fantasias não se realizarem, o monstro e a mãe de Alessandra se deram bem.

A velhinha saiu quieta do quarto e veio à cozinha, eu já preparando o jantar para nós três. Sentou-se na cadeira e pediu um bolinho de amêndoas. As unhas da sogra se alongaram. Nos olhos vi aquela raiva e decepção implacável que minha mulher herdou, condenando antes que pudesse me defender. Capturando a comida nas mãos, comeu-a avidamente.

A mãe fizera causa com o monstro. Defendeu toda maldade que o monstro me fazia, ela até tratava a criatura como se fosse a sua própria filha! Ameaçou levar o monstro com ela, roubar-me a última companhia que ainda tinha. Não podia permitir isso. Gritei, golpeei a mesa, reagi como um monstro também. O que podia fazer? Não sabia ela diferenciar entre os dois?—a filha que foi embora, o monstro que ficou no seu lugar. A mãe se tinha confundido. Eu não.

Sacudindo a cabeça com desdém completo, ela se calou, ignorou todas as minhas explanações.

—Diga.
—Não.
—Tá bem.

Falamos pouco estes dias, eu e o monstro. Nem saímos de casa, apenas para eu trabalhar na delegacia ou ir comprar comida para o jantar. Os vestidos e os ternos ficam no armário. O telefone não soa com convites de amigos já faz um tempo. A sogra não visitará mais. Os vizinhos, sem modos, sussurram impolidamente que eu moro com um monstro. Nem sequer a verdade deve ser tão bruta.

Comemos, eu e meu monstro. Joga-me pelo chão. Mas continuamos, sobrevivemos, sabendo que é melhor viver com monstro que ficar sozinho. Nossos jantares são mudos, o silêncio rompido somente por sua mastigação infernal. Eu miro essa criatura engolindo a comida, mas ainda me faz pouco caso. Contudo, desejo desesperadamente que a minha mulher volte a conversar, a estar comigo— aquela moça linda com quem me casei uns meses atrás. Aonde foi ela? Diga-me!

—Não.
—Tá bem.

 

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